
Trovante em 1981
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101 canções que marcaram Portugal #54: 'Balada das Sete Saias', pelo Trovante (1981)
14.03.2021 às 12h29
Em pleno boom do rock português, “Baile no Bosque” popularizou um género de raiz etnográfica. Sintetizou as novas linguagens musicais com o canto do folclore popular e tradicional. Assente num depurado rigor musical, foi um dos mais assertivos observadores da essência portuguesa e berço da 54ª de 101 canções que marcaram Portugal
101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
'Balada das Sete Saias'
Trovante
(1981)
A ‘Balada das Sete Saias’ é a primeira canção de um dos álbuns mais surpreendentes da música portuguesa, “Baile no Bosque”. É um álbum inusitado: vivia-se o boom do rock em Portugal; o público e as editoras pediam ‘Chico Fininho’, ‘Cavalos de Corrida’ e ‘Malta à Porta’. ‘Prima da Chula’, ‘Outra Margem’ ou ‘Lisboa’ não se enquadravam no padrão áspero da nova música que se produzia. As canções perduram na memória coletiva e são invariavelmente um retrato do seu tempo. O tempo do Trovante não era aquele e, também porque havia muito que os separava do seu tempo, o álbum ultrapassou-o.

A capa do single de 'Balada das Sete Saias', lançado pelo Trovante em 1981
A génese do Trovante é a guerra que se travava na Guiné, em Angola e em Moçambique; a guerra colonial veio indefinir os sonhos dessa juventude e moldar a sua razão. Aflorou uma geração indisposta, insurgente e interventiva. Os membros do Trovante viam, antes de ocorrer o 25 de Abril, o seu tempo correr veloz – até à decisão de ter de pegar em armas para defender juízos que não eram os seus. Em liberdade, modelados pelas canções de Zeca, Adriano ou José Mário Branco, seria instintivo que produzissem odes (ou trovas, para fazer pendant com o seu nome) a uma liberdade (ainda que já não fosse mais preciso lutar por ela). Mas a história do Trovante cruzou-se com as letras de Francisco Viana – um poeta que, apesar da sua agitação subversiva, escrevia canções em forma de versos – elegantes e harmónicos, dissimulando a sua cólera contida. Soube conceder à banda a fonética de que necessitava para intervir social e politicamente – sem, porém, ser panfletária ou datada.
O Trovante inovou, com Francisco Viana, a matriz da canção de raiz etnográfica: o povo, enquanto personagem coletiva, servia de inspiração aos criadores – e a banda soube, com requinte, metamorfosear a sua música pela via da vivência popular. Não surgiu todavia com nenhum objetivo que não fosse o de musicar palavras que fizessem sentido ao povo e à sua substância. Soube entrever, a partir de então, os traços culturais únicos que distinguem Portugal – e moldar a cognição musical dos portugueses. Inaugurou, sem o saber, o cognome de trovantismo – para designar a sintetização de novas linguagens musicais com o canto do folclore popular e tradicional, das nossas mais íntimas raízes.
Se pudesse prever o seu destino, é provável que o Trovante o tivesse traçado tal qual o percorreu, de tão apolíneo que se corporizou. O trajeto do Trovante anuncia uma densidade musical que despontaria com “Baile no Bosque”. À perfeição musical, o Trovante conseguiu agregar a glória junto do público, das rádios e dos críticos. “Baile no Bosque” é uma prosa musical que funde diversos géneros numa simbiose inovadora e festiva, que faria reequacionar os preceitos da música portuguesa. O grupo fruía o traquejo apreendido com Zeca Afonso, Vitorino, Fausto, Sérgio Godinho ou Brigada Victor Jara – mas também na tarimba dos elementos de origem mais tradicional da nossa cultura e nos estudos, por parte dos seus elementos, no Hot Club de Portugal. Foi essa tríade, aliada ao seu requinte e método, que alumiou o seu trajeto.
Sobressaía neste álbum ‘Balada das Sete Saias’: uma canção em três andamentos. A canção começa murmurante, com a voz de Luís Represas e o piano de Manuel Faria a flertar; avança para uma exaltação folclórica e consuma-se numa cadência jazzística, progressiva, num diálogo (que está na génese do jazz; faz sentido) com os elementos anteriores que congregam a sua origem. Manuel Faria trocou o piano por um sintetizador Roland a partir do segundo ciclo da canção – cruzando a euforia do jazz com a música de inspiração tradicional – imprimindo um semblante de rock progressivo a uma canção que nasceu cândida e floresceu complexa.
O Trovante não foi uma banda revestida de acaso, de imprevisto, de sorte: o Trovante, para além de se sustentar em trabalho, método e disciplina, era resultado de um profundo diálogo coletivo - de partilha e de amizade. Fundeou o seu sucesso na mestria com que soube associar esses elementos. O único acaso foi potenciar os talentos individuais para conceber um projeto único e irrepetível na música feita em Portugal. Soube escolher a melhor palavra, a melhor entoação, a melhor métrica, a melhor nota. Soube entrever em Carlos de Oliveira (que escreveu ‘Xácara das Bruxas Dançando’), em Florbela Espanca, em Francisco Viana, em João Monge, os mais redondos vocábulos que servissem a melhor música que tinha para executar. Soube edificar, a partir das contrariedades, oportunidades. E esses elementos – a par com a raiz mais popular que também nos descreve – fazem do Trovante um dos mais assertivos observadores da essência portuguesa. Esculpido com a música mais elegante que Portugal já produziu.
Sete ondas se noivaram
Ao luar das sete praias
Sete punhais se afiaram
Menina das sete saias
Ouvir também: ‘Peter’s’ (1990). Do último álbum de originais do Trovante, é uma homenagem ao mítico bar na ilha do Faial e uma metáfora de encontros e descobertas de personagens reais.
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