
John Lennon
John Lennon nasceu há 80 anos. Era um herói controverso, um pacifista que quis ir à guerra
09.10.2020 às 9h00
A vista panorâmica da vida de John Lennon facilitada pelo 'miradouro' instalado no alto das comemorações do seu 80º aniversário oferece-nos uma perspetiva generosa. Não é, ainda assim, fácil de assimilar tudo o que os olhos alcançam. No dia em que passam 80 anos do nascimento de Lennon, recordamos um ídolo polémico que o mundo soube abraçar
Publicado originalmente na BLITZ de novembro de 2010
Parte da razão para essa dificuldade em ver Lennon por inteiro prende-se com o tempo: em 1960 os Beatles estavam em Hamburgo a tocar rock and roll para soldados, prostitutas e marginais e meros dez anos depois, ao lado de Yoko, John Lennon estava na Califórnia a procurar sacudir todos os seus fantasmas com a terapia do grito primário conduzida pelo Doutor Arthur Janov.
De «Love Me Do» a «God» num piscar de olhos. Lennon não viveu os arquétipos rock and roll, inventou-os. "No início era uma luta constante entre o Brian Epstein e o Paul, de um lado, e eu e o George, do outro. O Brian fez-nos vestir fatinhos e camisas e o Paul apoiava-o completamente. Não era o meu estilo e eu costumava tentar que o George se revoltasse comigo. Eu dizia-lhe: 'Olha, não precisamos destes malditos fatos. Vamos atirá-los pela janela'. A minha rebelião era ter a minha gravata folgada com o último botão da camisa desapertado, mas o Paul vinha sempre ajeitar-me".
Estas declarações de John Lennon ao Melody Maker em 1969 são mais profundas do que o aspeto anedotário pode à primeira vista revelar. Se durante a era dourada dos Beatles, a marca Lennon & McCartney traduzia uma harmonia artística difícil de superar, quando John declarou que o sonho estava morto, com a edição do seu primeiro álbum a solo em 1970, "John Lennon/Plastic Ono Band", tornou igualmente claro que havia um fosso gigante a separá-lo de 'Macca'.
John assumia-se como o pacifista, idealista de esquerda, ativista, homem de família por oposição ao calculismo e capitalismo de vazio de ideias que acreditava animar McCartney. Estas diferenças não eram sublinhadas apenas na cabeça de John Lennon, mas também nas páginas de jornais. Em 1971, a pretexto de uma entrevista de Paul ao Melody Maker, em que a apresentação dos Wings era o pretexto mas onde se discutia igualmente a vida após os Beatles, John enviou para o jornal uma carta carregada de ataques em que esmiuçava as complexas questões da Apple e em que levantava questões de legitimidade política: "Então achas que a 'Imagine' não é política? É a 'Working Class Hero' com açúcar por cima para conservadores como tu". Sob esta luz, a imagem de 'Macca' a apertar a gravata de Lennon adquire outro significado.
Na verdade, John Lennon foi sempre um poço de contradições, o que só lhe sublinhava a frágil condição humana, um homem que em 1970 declarava que o sonho tinha morrido (na famosa canção 'God' que continha igualmente a frase "I don't believe in Beatles") e que um ano depois, em 'Imagine", declarava candidamente "podes dizer que sou um sonhador, mas não sou o único". Um homem que cometeu a afronta de entregar a condecoração que havia recebido da rainha, "para protestar contra o envolvimento de Inglaterra nas guerras do Biafra e Vietname e também contra o facto de «Cold Turkey' estar a descer nas tabelas de vendas".
O envolvimento com Yoko Ono, mais velha sete anos e vinda de um background artístico e intelectual completamente diferente, foi o combustível real para a década que se seguiu aos Beatles, quando a música passou a ser apenas um aspeto de um arsenal conceptual com que Lennon investia na luta pela paz. Ao NME, em 1971, declarava: "Passei por todas as trips: macrobiótica, Maharishi, a Bíblia, o I-Ching. passei por todas essas coisas e foi a Yoko que me puxou para fora disso tudo". Na verdade, John & Yoko passou a ser uma 'marca' tão clara e forte quanto na década anterior Lennon & McCartney tinha sido.
A sucessão de gestos de ativismo político, os bed-ins ou até o documentário "The U.S. Vs John Lennon", supervisionado pela própria Yoko tencionavam colocar a música ao serviço de algo maior, mas ao mesmo tempo Lennon recusava sacrificar-se no altar da paz: "Como o Pete Seeger disse, não temos um líder, mas temos uma canção, 'Give Peace a Chance'". Por isso, recuso-me a ser um líder e irei sempre mostrar os meus órgãos genitais ou fazer algo que me impeça de ser Martin Luther King ou Ghandi e ser morto por isso. Porque isso é o que acontece aos líderes". Afinal de contas, rematava Lennon ao Melody Maker à entrada dos anos 70, "as pessoas preferem um santo morto do que uma chatice viva como John & Yoko".
Em 1975, John haveria de embarcar numa pausa desencadeada pelo nascimento do seu filho Sean, saindo de cena como, no fundo, tinha entrado, editando uma coleção de covers de rock and roll, os clássicos que, acreditava ele, eram a régua por onde se deviam medir todas as canções. Esse período de entrega à família durou até ao final da sua vida e, de certa forma, dividiu a sua década de 70 em duas partes.
A reclusão só interrompida com a edição de "Double Fantasy" algumas semanas antes da sua morte seguiu-se a uma época em que Lennon procurou entender como lidar com o impulso para a revolução. Nesse período, quando Lennon via a Apple como uma utopia e afirmava que queria usar essa empresa para "criar coisas e vendê-las sem cobrar quatro vezes o seu custo", o ex-Beatle foi procurado por gente como Timothy Leary, o guru do LSD, ou Michael X. Este ativista, de nome Michael de Freitas, filho de um português nascido em Tobago, incendiou as consciências em Inglaterra ao importar o discurso radical dos Panteras Negras. Para suportar a sua causa, John & Yoko raparam as suas cabeleiras e ofereceram o cabelo para ser leiloado. Mas Michael acabou por fugir para Trindade onde seria mais tarde condenado à morte.
John, esse, trocou a revolução pelo amor, Inglaterra por Nova Iorque e a imortalidade pela paternidade. Quatro tiros disparados à porta do Dakota Building, a 8 de dezembro de 1980, roubaram-lhe a possibilidade de continuar a ser pai e impuseram-lhe a indesejada eternidade.
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