
Allman Brothers no arranque da década de 1970
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Rebobinanços #6: “Idlewild South” (1970), dos Allman Brothers
16.08.2020 às 8h45
Era rock de barba rija. Era rock do sul. Era contra o preconceito. Era dos tempos em que os horizontes eram largos, não havia barreiras nem fronteiras. Os Allman Brothers não conquistaram o mundo, foi o mundo a conquistá-los. Misturaram habilmente géneros que para muitos eram como água e azeite - para eles não. Os gigantes do 'southern' no sexto 'rebobinanço', um olhar sobre álbuns que deixaram a sua marca
Os Allman Brothers são muito possivelmente a primeira grande banda de Southern Rock. Foram, muito possivelmente, eles os primeiros a chegar e a enterrar fundo os pilares do género no panorama musical da altura. Mas, não se tornaram colossos só por isso. Foram das poucas que misturaram Country, Jazz e Blues ao já rico Southern. Foram verdadeiramente inovadores. Elevaram a fasquia muito alta para as bandas que lhes seguiram o trilho. Levaram o Southern para um outro horizonte.
A banda foi fundada em 1969 por dois irmãos. Duane (guitarra) e Gregg Allman (teclas e voz) e mais quatro companheiros: Dickey Betts (guitarra), Berry Oakley (baixo), Butch Trucks (bateria) e Jai Johanny "Jaimoe" Johanson (percussão). Foram estes que começaram esta grande aventura com momentos muito altos.
Muitas alterações a banda sofreu ao longo dos anos. Muitos músicos entraram, outros tantos saíram. Duane Allman faleceu em 1971 num acidente de mota. Berry Oakley no ano seguinte, da mesma maneira. Diz-se que nunca ultrapassou a morte do amigo e que caiu numa depressão profunda. Continuaram sempre com Gregg Allman e Butch Trucks no comando. São eles os dois totalistas de toda a discografia dos Allman Brothers Band. Destaquemos, porém, dois músicos que fizeram parte das fileiras do grupo: Chuck Leavell, que desde 1983 é o teclista de Rolling Stones, e Warren Hayes, que paralelamente fundou uma das melhores bandas de Blues Rock que conheço: os Gov't Mule. Recomendo vivamente. Um guitarrista como há poucos, dono de uma voz ímpar.
Temos, no entanto, de recuar alguns anos. Precisamente até 1965, quando os dois irmãos formaram a sua primeira banda, os Escorts. Mudaram depois para Allman Joys e de seguida para Hour Glass. Decidiram, depois disso, seguir carreira como músicos de sessão. Duane chegou a tocar com Aretha Franklin e Gregg com Wilson Pickett. Por fim, o salto que faltava, muito pela determinação do manager de Otis Redding, que os voltou a reunir: vieram os Allman Brothers Band.
"Idlewild South" é o segundo disco da banda. É um trabalho mais maduro, mais complexo que o seu antecessor. Os temas são mais estruturados. As letras mais refinadas. É um disco extremamente coeso.

“Idlewild South”, dos Allman Brothers
Arrancamos com um tema de Betts, "Revival". É muito leve e com uma mensagem muito positiva. "Love is everywhere, People can you feel it?". Começa com uma introdução instrumental absolutamente harmoniosa. Tornou-se um hino hippie. Faz o lançamento perfeito para "Don't Keep Me Wonderin", um dos grandes temas do disco. Fala de um amor não correspondido. Porém, o narrador não desiste com facilidade. Insiste, argumenta e só pede que ela não o deixe à espera já que a mesma tem sido longa. Quer respostas, mas não está fácil: aparentemente a paixão não está para ali virada.
Enquanto isso, temos um baixo absolutamente demolidor a pavimentar o terreno que as guitarras vão desbravando. Uma a pautar o ritmo, a outra, a slide, a pintar os espaços que vão ficando vagos. A harmónica, juntamente com a bateria, e a percussão ditam o ritmo. Os ingredientes que dão o toque final nesta perfeição de tema são precisamente o hammond vibrante e a voz de Gregg Allman. Esta é para mim, uma das melhores vozes do Southern. Tem tudo o que é preciso. É poderosa. É rouca. Tem atitude e muito groove. Tem uma amplitude grande e, acima de tudo, tem postura.
O disco foi gravado em cinco meses entre Nova Iorque, Miami e Macon, em pleno coração do estado norte americano da Georgia, onde se situava o quartel general da banda. O grupo criou desde cedo uma união muito forte. De início, o dinheiro não abundava: viviam todos no mesmo apartamento, ensaiavam durante horas a fio, escreviam letras para as músicas enquanto vagueavam pelo cemitério local. Consumiam drogas - psicadélicas, na altura.
Após o lançamento do primeiro disco, a banda conseguiu encaixar algum dinheiro e a fama veio também de forma natural. Mudaram-se do apartamento para uma quinta grande. A cidade começou a ter bastante movimento graças à presença do grupo por lá. Atraiu muitos rockeiros. E foi precisamente pelo facto de o movimento ter aumentado exponencialmente que o segundo disco tem o nome que tem. Porquê "Idlewild South"? Idlewild é o nome original do aeroporto JFK, em Nova Iorque, aeroporto esse com movimento diário brutal. Foi esse movimento que inspirou a banda, já no sul, em Macon, a baptizar o disco. Associou o movimento do aeroporto aquando da sua passagem por Nova Iorque com a revolução na sua pacata cidade. Depois do lançamento do álbum foram viver todos para um palacete vitoriano chamado "The Big House". É, ainda hoje, o museu oficial da banda.
Há uma versão no álbum. "Hoochie Coochie Man", de Willie Dixon, composta em 1954. Tornou-se imortal na voz e guitarra do lendário Muddy Waters. Esta versão dos Allman é efectivamente muito mais rápida que o original. Fala de premonições ciganas. Cartomantes videntes astutas que, com os seus feitiços, encantavam por onde passavam com as suas carroças. É o caso da mãe do narrador a quem, certo dia, vaticinam o nascimento de um rapaz que viria tornar-se o terror das mulheres. Isto é a definição de Blues como vem nos manuais.
Há em todo o disco um constante despique de guitarras entre Duane e Betts. São, na verdade, dois guitarristas de uma classe intocável que, instigados um ao outro, fizeram coisas absolutamente geniais.
"Leave My Blues at Home" é um daqueles temas que mostra liricamente aquilo que o Blues ensina e sempre apregoou durante anos e anos. Retrata o fatalismo de alguém que vive preso dentro de si mesmo. É fácil de início, mas ao fim de um tempo a coisa complica-se. Esse alguém anda sempre com o Blues às costas para onde quer que vá. Anda sempre com o peso da solidão atrás. O mesmo se passa no tema "Please Call Home". Há uma relação que termina. Há o peso da separação, mas há também o apelo a um repensar das escolhas. Pede-se ao outro lado, o que saiu de casa, que se mudar de ideias ligue de novo para casa. Que volte. A porta estará sempre aberta.
Após o lançamento de "Idlewild South", Eric Clapton convidou Duane Allman para um projeto que estava a dar os primeiros passos. Dava pelo nome de Derek and The Dominos. Um supergrupo que apenas lançou um álbum. Bastou para que umas das canções ficasse para a história. A incontornável 'Layla'.
O primeiro concerto grande foi a 30 de maio de 1969. Abriram para Velvet Underground em Boston. Uma das marcas mais distintivas dos Allman Brothers e um dos seus pontos fortes era precisamente a componente ao vivo. Era de tal forma intensa que, ao terceiro trabalho da banda, o grupo lançou-se logo para um disco ao vivo. "At Fillmore East" é um marco importantíssimo na história da música. Considerado por muitos como um dos melhores de sempre. A capacidade de improvisação era tremenda. Conseguiram criar jam sessions que se tornaram épicas. Eis aquela que, para mim, é a mais perfeita:
Continuando na senda da perfeição, temos um tema instrumental que mostrou ao mundo o quão complexo pode ser o Southern Rock dos Allman Brothers. Combina na perfeição Rock com Jazz. É uma fusão sublime. Foi, sem dúvida, um dos temas que ajudou a catapultar a banda para outras realidades. A história do nome da música é, no entanto, sombria. Consta que o autor da mesma, Dickey Betts, andava envolvido com a namorada de um músico seu contemporâneo, o conhecido vocalista de blues Bozz Scags. Para não revelar a identidade da senhora, Betts inspirou-se numa lápide que encontrara no cemitério onde a banda passava largas horas, com o nome de Elizabeth Reed. Dai "In Memory of Elizabeth Reed". Anos mais tarde, foi o próprio Duane Allman a revelar a história verdadeira por trás do mito.
O tema deste disco que mais o marca é uma ode de seu nome "Midnight Rider". Na verdade, tudo o que se pode dizer de genial em relação a este tema sabe sempre a pouco. Fala de um solitário que vagueia numa estrada que nunca acaba. Tem um dólar de prata. Claramente metafórico, mas é o que acompanha mais o pensamento naqueles que o querem encontrar. Ele não vai deixar que isso aconteça. Ele nunca pára, não se pode deixar apanhar, vagueia com roupa que não é dele, dorme em qualquer sítio e com quem quer que seja. Esta música é a verdadeira representação do Southern. É a sebenta para o futuro do género. É assim que se faz uma grande música. Simples. Direta. Uma verdadeira joia do sul.
Bons rebobinanços.
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