






















“Branco com preto, geração de ouro”. Dino D’Santiago cantou a sua “nação kriola” no Campo Pequeno e deixou pouco por dizer
07.06.2020 às 2h19
Depois de “Deixem o Pimba em Paz”, a música ao vivo regressou aos palcos lisboetas com o carisma e a “nação Kriola” de Dino D’Santiago a embalarem uma pequena multidão de máscaras
O embate inicial com a “nova normalidade” da música ao vivo, em contexto Covid-19, é como que o choque da partida para uma viagem a uma realidade paralela: as palmas podem manter-se bem vivas, mas os sorrisos desaparecem por trás das máscaras, o extravasar de energia é contido pela restrição de movimentos e a necessidade de manter distâncias. Não se veem abraços efusivos nem beijos furtivos, há um autopoliciamento constante. Tudo se torna ainda mais difícil de observar e de viver quando, em palco, temos alguém tão carismático e acolhedor quanto Dino D’Santiago a puxar por nós. Não há como disfarçar: dançar sentado não é tão saboroso, cantar para um pedaço de tecido deixa um travo amargo na boca. Mas é o que precisamos de fazer se queremos, um dia, avançar para uma realidade melhor, na qual artista e público voltam a comungar, bem alinhados, esta religião a que chamamos de música.
A noite era duplamente especial. Além do regresso aos palcos, depois de longos meses de afastamento, Dino D’Santiago trazia consigo um novo álbum para apresentar. “Kriola” é um importante capítulo de um percurso construído a pulso e, também, uma coleção de canções que não podia ter chegado em melhor momento. O mundo está em convulsão. 2020 soa cada vez mais a ano de “ou vai ou racha” e a humanidade está a viver tão intensamente no limite que num mesmo dia vemos, na mesma cidade, uma gigantesca manifestação antirracista e um artista cerrar o punho no ar para nos cantar hinos de união. “Branco com preto, geração de ouro". É essa a mensagem que, esta noite, endereçou a uma “Lisboa Kriola” que ostentou, orgulhosamente, na t-shirt que levou ao palco.
Antes de arrancar a atuação com ‘Morabeza (na na na)”, tema que abre magistralmente o novo álbum, Dino lançou um aviso e um pedido. “Mantenham-se sentados para não nos boicotarem”, relembrou, antes de dar o mote para um minuto de silêncio pelos “mais de 40 milhões de escravos que existem por todo o mundo, 20% crianças e 40% mulheres”. 60 segundos de introspeção "pela liberdade" depois, o silêncio sepulcral descambou em palmas e nos versos certeiros de ‘Morabeza’: “não me venhas dizer / que só chegou agora / essa nação kriola”. A brisa forte de modernidade das canções que criou para o disco reapresentam-nos um Dino ainda mais seguro e orgulhoso das linhas com que cose a sua música. Abraçando as raízes cabo-verdianas, cruza-as e agiganta-as com os sons do agora.
O calor de ‘Nova Lisboa’, a viagem até Santiago com ‘Raboita Sta. Catarina’ e os ritmos ondulantes de ‘Tudo Certo’, aventura com Branko, deixaram a plateia no ponto. A voz de canela de Dino destilou sedução quando se soltou o batuque e resvalou para o funaná. Não há ancas que lhe resistam. Secundado por um trio feminino que além de assegurar os coros coordenou os ritmos, o artista algarvio puxou do bálsamo ‘Sô Bô’ antes de ‘Arriscar’ um falsete seguro, salpicado de autotune, e dedicar uma quentinha ‘Roda’ ao amor dos amigos Margarida e Miguel. A paixão contagiou ‘My Lover’, um dos momentos mais especiais do concerto, e ‘Sofia’ chegou com sabor a cachupa, mas foi quando irrompeu o combativo ‘Kem Ki Flau’ que a mestria de Dino em palco ganhou uma outra dimensão. Ninguém o segura. “Nada nem ninguém deve impedir a nossa capacidade de sermos quem somos. Um dia ainda vai valer muito a pena sermos quem somos”, atirou, como quem sabe bem do que está a falar.
A introspeção de ‘Mundu Nôbu’ e o balanço de ‘Como Seria’ empurraram-nos para a efervescência de ‘Kriolu’, que, por ordem do artista, só podia ser vivida “à moda antiga”: “só neste som, quero toda a gente de pé”. Impossível resistir... Até porque a emoção que emana contagia quem está com ele, seja uma pessoa, seja uma multidão. A sedução de ‘Ilhéus’ serviu de arranque para um curto regresso ao palco, que, claro, terminou com a festa de ‘Nôs Funaná’ a completar o ciclo da “nação crioula”. Antes das despedidas houve ainda tempo para uma mensagem, partilhada com alguns dos colegas que se encontravam na plateia (de Cláudia Semedo a Carolina Deslandes ou Carlão. “Não deixem a cultura morrer. Nós não vamos morrer”. Porque haverá vida para lá deste parêntesis que estamos a viver e porque é com artistas como Dino D’Santiago que o futuro da cultura portuguesa já começou a escrever-se.
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