




























1 de junho de 2020. O dia em que deixámos o bicho em paz e fomos ao primeiro concerto do resto das nossas vidas
02.06.2020 às 2h21
“Deixem o Pimba em Paz”, no Campo Pequeno, selou a reabertura dos espetáculos em Portugal: boião de álcool-gel à porta, espectadores a tempo inteiro mascarados, uma estranha comunhão e uma inesperada normalidade. E um espetáculo delirante com Bruno Nogueira em estado de graça, Manuela Azevedo supersónica e o Primeiro-Ministro a aplaudir na plateia. Foi um bocadinho da vida a regressar
Estávamos a meio de março quando a música ao vivo se calou, as salas de espetáculos ficaram vazias e nos fechámos em casa. A gente sabe porquê. Dois meses e meio depois, ensaia-se o regresso, calculado, à tal normalidade que não voltará tão cedo a ser a mesma. Cumpre-se com a primeira noite de “Deixem o Pimba em Paz”, o espetáculo que junta o humorista Bruno Nogueira a Manuela Azevedo dos Clã e um trio de excelentes músicos, uma espécie de ritual iniciático que intitularemos, à falta de melhor, de “Vamos Lá Ver no que Isto Dá”.
Desengane-se quem esperaria porventura uma marcha hesitante rumo ao desconhecido: a 'romaria' lembra os velhos tempos, só que agora usamos máscaras e não entramos todos à bruta numa sala de espetáculos, copo de cerveja a entornar para o tapete, cigarro a sacar à socapa e abraços semi-embriagados no refrão. A entrada no Campo Pequeno processa-se por todas as portas, dividindo-se o público - com lugares marcados - por diversas zonas, sem se cruzar. Na 'arena' há várias filas com lugares previamente 'desmarcados' (isto é, estão lá para não serem usados), cumprindo-se distância entre quem se senta, respeitando-se também o desencontro de cabeças com as filas da frente e de trás. Há, de imediato, uma sensação de segurança: não se sente um bafo na nuca. Nas galerias, a mesma organização: quem está junto fica junto, mas há um puzzle evidente. A lotação estará a menos de metade da capacidade da sala, até porque não existem, respeitando o que diz a lei, lugares em pé em espetáculos realizados em sala.
Álcool-gel à porta para uma primeira estação de 'segurança' e o pedido por parte de quem orienta o público para os seus lugares para que a saída, no final, só aconteça quando alguém disser que já pode ser. É o que sucederá, duas horas depois, quando fila a fila, sem atropelos, a debandada é pacífica e descomplicada. Para maior ventilação, parte da cúpula do Campo Pequeno está aberta, sentindo-se uma frescura pouco habitual na sala, e ainda mais inesperada tendo em conta que à frente de cada rosto há um pedaço de algodão.
Dez minutos passam da hora prevista para o início do espetáculo quando o Primeiro-Ministro António Costa chega, acompanhado por Álvaro Covões (diretor-geral da Everything Is New, uma das promotoras deste espetáculo, e novo dono da sala onde o mesmo se realiza), para também ele fazer parte deste momento. Logo de seguida, reunidas todas as condições para o debute, as luzes apagam-se e há um enorme aplauso - uma sentida e demorada manifestação de comunhão - que agracia os artistas que, na penumbra, ocupam os seus lugares. Bruno Nogueira (voz, melódica, percussão) e Manuela Azevedo (voz, percussão, kazoo, flauta, piano ocasional) posicionam-se nos lugares centrais, 'lateralizados' por Filipe Melo (piano), Nelson Cascais (contrabaixo) e Nuno Rafael (guitarras, banjo, percussão). Voltámos.
É um espetáculo apuradíssimo e delirante, não só porque empresta inspiradas roupagens jazzísticas, 'cabaréticas', 'acountryzadas', até ocasionalmente pop, ao mais emblemático acervo pimba, mas também porque Bruno Nogueira, qual mestre de cerimónias, incute-lhe um humor transbordante, dando sempre a ilusão de que é burilado no momento, não se limitando a fazer a ponte 'burocrática' entre canções. Memorável o momento em que todos os músicos são apresentados (um clássico do rock and roll, pois então), longa mas nada elogiosamente, um 'episódio' que valeria por si só: Nogueira encontra em todos os seus 'lacaios' uma gama de ausência de qualidades absolutamente assinalável, numa rábula impiedosa e brilhantemente doseada.
O 'herói da quarentena' divide despesas vocais com Manuela Azevedo, uma intérprete incansável que aqui balança a sua concentração entre a exímia entrega na voz a várias solicitações de percussão, sendo peça indispensável na secção rítmica. O desfile de êxitos é irrecusável: '24 Rosas', 'Azar na Praia', 'Sozinha', 'Na Minha Cama Com Ela', 'Vem Devagar Emigrante' (em jeito de drama rap), 'Comunhão de Bens', 'A Bela Portuguesa', 'Som de Cristal' (a caber nas voltas do timbre de Salvador Sobral, primeiro convidado da noite), 'Porque Não Tem Talo o Nabo', 'Sensual' (com notas de disco funk), 'Bebé' (diabólica percussão), 'A Garagem da Vizinha' (em formato 'unplugged'), ' O Melhor Dia Para Casar', 'Mãe Querida' (uma canção com tantas vozes que aqui ficou bem apenas com duas: Nogueira e o segundo convidado, Samuel Úria), 'Não És Homem Para Mim', 'Ninguém, Ninguém' (um épico de Marco Paulo transformado em excelsa canção pop) e 'Taras e Manias'.
Regista-se uma exceção ao tratamento pimba, um desvio para o romântico, 'Vendaval', de Tony de Matos, assomo de sobriedade que antecede o 'grand finale' dedicado exclusivamente ao repertório de Joaquim de Magalhães Fernandes Barreiros, o nativo de Vila Praia de Âncora a quem agradecemos o imaginário, as rimas e a brejeirice descarada de 'Os Peitos da Cabritinha' (canção de embalar com direito a solo de flauta), 'O Pito Mau' (bonito, bonito é o banjo de Nuno Rafael), 'A Padaria' e 'Os Bichos da Fazenda'.
Havemos de fazer isto outra vez.