
António Variações
Warner
António Variações faria hoje 75 anos. Por que razão a sua história ainda está mal contada
03.12.2019 às 14h57
“Ainda hoje não sabemos que cometa era aquele”, escreveu Miguel Cadete aquando dos 30 anos da morte do artista. António Variações faria esta terça-feira 75 anos
Publicado originalmente no Expresso Diário de 13 de junho de 2014
Para perceber António Variações, talvez valha a pena, antes do mais, começar por desmontar o mito e ficarmos pelas evidências e por aquilo que é factual. E o primeiro erro que todos cometemos ao tentar escrever-lhe a biografia é inscrevê-lo na vaga de rock português que surgiu a partir do momento que Rui Veloso publicou Chico Fininho e o álbum Ar de Rock em junho de 1980.
Posso não saber quem ele é - não o conheci pessoalmente e nunca o entrevistei - mas sei que António Joaquim Rodrigues Ribeiro pouco tinha em comum com a geração de Rui Veloso, Pedro Ayres Magalhães, Rui Reininho, António Manuel Ribeiro ou Zé Pedro. Sei também que a sua obra, quero dizer a música produziu e, sobretudo, as letras que escreveu, em pouco ou nada se relacionavam com a ideia de contestação da sociedade de consumo que invariavelmente todo o rock português prometia ("Chiclete", "Propaganda", "Cavalos de Corrida", "Rapariguinha do Shopping",...) nem com a firme intenção de emular os estilhaços de new wave que então eram disparados a partir do Reno Unido ou, em dose menor, dos Estados Unidos da América. Que ele, ao contrário dos outros, não era oriundo da classe média alta. Sei também que era viajado e isso não é certo na geração que em 1980 tinha 24 anos. Quando o "Robot" começou a tocar incessantemente na rádio portuguesa, António Variações já contava 37 primaveras.
É, por isso, irrelevante constatar que o primeiro álbum foi gravado com a ajuda de alguns dos músicos que então constituíam os GNR e que, no segundo, ele teve a ajuda daqueles que faziam parte dos Heróis do Mar. Se a música de António Variações estava entre "Braga e Nova Iorque" como, invariavelmente, todos os textos sobre ele repetem, isso não é detetável nos GNR ou nos Heróis do Mar. Nem sequer o uso promíscuo que fazia de aforismos populares nas suas letras ("O corpo é que paga", "quando fala um português", "é pr'a amanhã") se encontra no cosmopolitismo de uns ou no nacionalismo dos outros.
Posso não saber donde veio António Variações, além da menção, também ela omnipresente da freguesia de Fiscal, no concelho de Amares onde nasceu. Mas sei que em 1978, três anos antes da mãe de Rui Veloso chegar a Lisboa com uma cassetes gravadas do seu filho, já tinha um contrato discográfico assinado com a Valentim de Carvalho, a mesma editora dos autores de "Chico Fininho", de "Portugal na CEE" ou de "Rua do Carmo". Sei também que ele não vinha de um subúrbio da capital ou de uma zona mais chique de Lisboa; mas que tinha fama na discoteca Trumps onde se reunia a comunidade homossexual; e que era cabeleireiro de personalidades que à época apareciam na televisão, como a jornalista Maria Elisa ou o apresentador Júlio Isidro, que lhe abriram portas na TV, na rádio ou nas editoras discográficas.
Também sei que não foi aceite numa audição para vocalista dos Corpo Diplomático - o grupo de onde nasceriam os Heróis do Mar -, e que a editora com que tinha contrato assinado não sabia o que com ele fazer. A esse respeito, é de assinalar que as suas primeiras gravações, ainda hoje inéditas, são produzidas por Mário Martins, que havia trabalhado com Marco Paulo, José Cid, Paco Bandeira ou Alexandra, com orquestração de Jorge Machado (António Calvário, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias), nomes ligados ao que então se intitulava "música ligeira" ou "nacional cançonetismo", senão mesmo folclore.
Não sei, não tenho a certeza, por que António Variações foi maltratado num dos seus primeiros espectáculos, já depois de editado o máxi-single "Estou Além" / "Povo que Lavas no Rio", na Feira Popular, enquanto fazia a primeira parte dos UHF. Mas sei que depois de os seus telediscos passarem na televisão foi adorado por um público que não se restringia ao do rock português e que, muito provavelmente, incluía todas as donas de casa do país.
Não sei porque a geração a que alegadamente se destinava - o target, como se diz agora - continuou na sua maioria, a desconfiar dele. Mas sei que nas editoras, nas rádios, na televisão e nos jornais despontava um número de profissionais que mudaram as regras da indústria da música em Portugal e fizeram com que nada fosse como dantes, tornando-a comparável com o que se fazia "lá fora". Alguns desses ainda estavam por trás da melhor homenagem que um dia fizeram a António Variações, os Humanos, e voltaram nessa ocasião a escrever a história da música em Portugal. Esses, e outros que então apareceram, têm a obrigação de não deixar esquecido o génio sem mestre e, acima de tudo, começar a deixar claro quem era António Joaquim Rodrigues Ribeiro.
Relacionados
-
INSIDE #46: A banda de "Variações" vai ouvir-se em todo o país. Antes, tocou o inédito 'Quero Dar Nas Vistas' só para nós [VÍDEO]
Fomos à sala de ensaios da banda Variações. Trouxemos de lá 'Na Lama' e 'Quero Dar Nas Vistas'
-
“António era um nerd, certinho nas contas. Não bebia ou fumava, só queria ser cantor”. A entrevista com João Maia, realizador de “Variações”
Da ideia inicial, que começou a esboçar-se há década e meia, até ao filme sobre António Variações estar completo, João Maia fala sobre a escolha do protagonista, complicações na produção, a escolha do guarda-roupa e daquilo que o artista significa hoje para si
-
“Variações”: a banda sonora do filme explicada, canção a canção, por quem a criou
Armando Teixeira, responsável pela releitura de clássicos como 'Canção de Engate' ou 'Estou Além', fala sobre o desafio que lhe foi apresentado pelo realizador João Maia e as opções que tomou em cada uma das faixas do álbum
-
Quem era afinal António Variações?
A infância em Fiscal, a chegada à capital aos 12 anos para entregar mercearias, a tropa em Angola (onde deu catequese), o ofício de barbeiro, a vida em Amesterdão e as primeiras ousadias na música: um olhar que vai além da superfície, fixado num artigo publicado em 2004, altura em que a vida e a obra do artista se encontravam apagados do mapa “por esquecimento ou por ingratidão”
-
O 'regresso' de Variações ao Trumps, 38 anos depois. Um concerto a transbordar de emoção
Depois da antestreia de “Variações”, a banda liderada pelo protagonista Sérgio Praia e pelo músico e produtor Armando Teixeira atuou na discoteca lisboeta Trumps, onde António - apenas António, em 1981 - deu o seu primeiro concerto. Estivemos lá
-
“A história do António, um cantor gay nascido numa aldeia, tinha tudo para dar errado”, afirma o realizador do filme “Variações”
António Variações saiu da sua pequena aldeia para encontrar o sucesso em Lisboa. João Maia, realizador e argumentista do filme sobre o artista, que hoje se estreia, falou com a BLITZ sobre um percurso incomparável
-
“Variações” à lupa. 10 aspetos do filme sobre António Variações a que vale a pena estarmos atentos
Vimos a 'biopic' de António Variações, que se estreia esta quinta-feira, e contamos-lhe o que pode esperar. Entre visões e ficções
-
“Em vez de fazer um filme sobre o rock português, fiz um sobre um barbeiro que queria ser cantor”. O caminho de João Maia até “Variações”
O realizador do filme biográfico de António Variações, que chega às salas de cinema nacionais na próxima quinta-feira, falou com a BLITZ sobre a génese do projeto cinematográfico
-
Sérgio Praia: "A última empregada foi das poucas pessoas que olhou nos olhos do António Variações. O resto eram vampiros da altura" [VÍDEO]
Falando com a BLITZ sobre as conversas que teve com familiares e amigos de António Variações, o ator que encarna o falecido cantor no filme “Variações” diz que se emocionou ao conhecer a última empregada
-
Sérgio Praia: "Tal como o Variações, sempre quis sair da minha terra. Queria sair do Furadouro, trabalhava nas obras" [VÍDEO]
O ator que encarna António Variações no filme biográfico que estreia na próxima semana falou com a BLITZ sobre os pontos em comum entre a sua vida e a do falecido cantor
-
Sérgio Praia: “O Variações era um homem tímido, mas ao mesmo tempo tinha um apetite sexual muito forte. Era um animal de caça” [VÍDEO]
O ator de "Variações" falou com a BLITZ sobre a aura de mistério do falecido cantor
-
Sérgio Praia: “O António Variações foi muito maltratado durante muito tempo, isso há que dizê-lo. Ele e muitos” [VÍDEO]
O filme "Variações" estreia na próxima semana e a BLITZ falou com o ator Sérgio Praia, que encarna António Variações, sobre o impacto que o cantor continua a ter 35 anos após a sua morte
-
Sérgio Praia: “Percebi o amor que Variações tinha pela Amália e soube que tinha de estudar melhor aquele 'bicho'” [VÍDEO]
O ator que encarna António Variações no filme "Variações", com estreia marcada para a próxima semana, falou com a BLITZ sobre o amor partilhado pela fadista
-
Como António Variações encarnou em Sérgio Praia. “Ele era tímido, falava baixinho, mas era um animal de caça. Sonhava alto”
Em longa entrevista, conta-nos como partiu de Amália para chegar a António, recorda as desventuras de um filme que parecia amaldiçoado mas como, a dada altura, as estrelas se alinharam. Não se furta também a traçar o retrato de alguém que “foi muito maltratado” antes de ser respeitado e que precisou de tempo, mesmo depois a morte, “para fazer as pazes com este país”. É o protagonista de “Variações”, a 'biopic' daquele que muitos consideram o inventor da pop portuguesa, com estreia dia 22 nos cinemas