















dEUS ao vivo no Coliseu de Lisboa: onde é que estávamos todos há 20 anos?
25.04.2019 às 2h26
A celebração de duas décadas de “The Ideal Crash”, o álbum mais imediato de uma banda belga até aí complicada. O tempo fez bem a canções que já tinham brilho, mas ganharam coração com a idade – não houve uma alma na mais emblemática sala lisboeta que não acusasse o seu pulsar
Fosse isto uma conversa entre amigos e este que vos escreve começaria assim: “1999 foi um ano do caraças”. Para começar, éramos novos, despertos e convencidos de saber duas ou três coisas sobre a vida (esboroar-se-iam todas aos 30). Bebíamos vodka marado, vestíamos calças de bombazine, fumávamos coisas, o cabelo crescia. As noites acabavam tarde, a jogar matrecos, a falar deste país, com a mania das letras e da esquerda que nos há de salvar e dos livros – quanta clareza, tamanha iluminação, devíamos pôr isto em papel. Depois vinha o vodka marado e um comprimido que isso passa.
Rebobina. 1999 foi um ano do caraças, não foi? Os Flaming Lips, vindos do underground americano, lançavam o estratosférico “The Soft Bulletin”, os emproados Blur brincavam com o seu próprio som (e o que não era próprio também) no estupendo “13”, Prince encarnava em Beck, Stephin Merritt despachava 69 canções, e havia um disco do Moby a passar em todos os centros comerciais, desfiles de alta costura e publicidade a sabonetes. OK, 1999 não foi assim tanto um ano do caraças.
Mas se 1999 ainda aqui nos arranha o cocuruto não é apenas por ter sido o único ano com três noves em que alguma vez teremos passado uma temporada; é também porque uma banda belga muito apreciada pela ‘imensa minoria’ lançou um álbum que conquistou a ‘nação’ au ralenti. Depois de “Worst Case Scenario” (1994) e “In a Bar Under the Sea” (1996) terem afirmado os dEUS como um combo de art-rock capaz de beber no jazz como em Tom Waits ou Captain Beefhart, “The Ideal Crash” veio mostrar que Tom Barman e companheiros sabiam fazer canções escorreitas, mais amplas, ainda muito ‘escola de arte’ mas capaz de tocar a todos.
Os puristas de ‘Suds & Soda’ e ‘Roses’ e os elitistas de “My Sister = My Clock”, mini-álbum de uma faixa só (para irritar), estrebucharam. Que isto já não é dEUS, sacrilégio, cruzes canhoto. Em boa verdade, isto já não era bem dEUS, se dEUS forem também Rudy Trouvé (o artista plástico das primeiras capas, o homem que colocava a ‘arte’ em ‘escola de arte’) e Stef Kamil Carlens (também artista plástico e músico que achou por bem dedicar a sua musa aos apreciáveis Zita Swoon). Em “The Ideal Crash”, nenhum deles fazia já parte da banda, e foi precisamente a menor proliferação de visões distintas que deu ao disco uma forma una: 10 canções que pertencem ao mesmo álbum, à mesma época, à mesma cozinha, quase todas nascidas da mesma cabeça (Tom Barman).
Aprendemos a gostar de “The Ideal Crash”, o disco dos dEUS ‘vendidos’, porque as canções, afinal, eram mesmo boas. Grandes, arejadas, com menos contracurvas, mas ainda bastante detalhadas e – novidade, talvez – onde se sentiam mais claramente os sintomas de um coração a querer bater mais depressa. É, também, descaradamente, um disco das questões mais lixadas, da corda frouxa que separa a coragem da capitulação, dos desencontros fatais, do fundo do poço, do olhar para dentro sem a certeza de encontrar a porta para fora.
1999 também foi um ano do caraças porque falávamos dos discos a altas horas à frente de um ecrã de computador: eu chamava-me qualquer coisa muito grunha, tu eras SisterDew, Magdalena ou Dream0ne, a linha telefónica guinchava, escrevíamos ‘/nickserv identify idealcrash’, a ligação caía com um ‘ping timeout’, mas para a semana há janta do canal (se isto lhe parecer um enigma, vá por aqui).
A geração alternativa da segunda metade dos anos 90 lisboetas (o trip-hop, Tindersticks, concertos na Aula Magna com invasão de palco, livros da Assírio & Alvim, cinema no King, FCSH depois do almoço, Bairro Alto e Incógnito depois da ceia, “A Hora do Lobo” do António Sérgio em vésperas de frequência) compõe a maior parte do público desta noite frescota de 24 de abril no Coliseu dos Recreios (amanhã, dia 25, há nova dose no Porto para gáudio da ‘geração Mercedes’). É uma espécie de jantar de curso propenso a sentimentos contraditórios – mas quem nunca teve de mandar retirar um sinal de nostalgia a laser que atire a primeira pedra (com carinho, por favor).
Em palco, da formação de “The Ideal Crash” há dois ‘sobreviventes’: Tom Barman (voz e guitarra) e Klaas Janzoons (violino, teclados). Nos dEUS de 2019 tocam ainda Bruno DeGroote (guitarra), Stéphane Misseghers (bateria) e Alan Gevaert (baixo). São coadjuvados por um inesperado ‘corpo de baile’ (“são portugueses”, revela Barman perto do final) que incute teatralidade em algumas canções (nomeadamente replicando a coreografia de ‘Instant Street’, quando chega a sua vez).
O alinhamento de dez canções é respeitado sem malandrice. O concerto começa com a eletrizante ‘Put the Freaks Up Front’, logo contrastada por ‘Sister Dew’, a motivar os primeiros coros da audiência. Barman está um pouco rouco, mas nesta canção de refrão panorâmico desenhado pelos teclados de Janzoons a maior gravilha vocal confere-lhe humanidade. Manso, mansinho, chega-se a ‘One Advice, Space’ e ‘The Magic Hour’ (esta abrilhantada pelo habitual violino vespertino), canções para ondular a cabeça.
‘The Ideal Crash’, naquele seu frenesim agridoce (a letra não é propriamente escrita a partir de uma cúpula de felicidade), continua a soar-nos incompreensivelmente empolgante (talvez seja da forma como apetece sempre cantar esta rima fácil: “If it's a lot, show them what you got”), mas não deixará de ser sempre a antecâmara imediatamente anterior a um dos momentos capitais de qualquer concerto dos dEUS (e, sobretudo, deste que se constrói em torno do disco que a contém): ‘Instant Street’. Em 1999, esse ano do caraças, um bom amigo e – lá está – acólito absoluto dos primeiros álbuns rabujava: “mas isto é folk, não tem ponta por onde se lhe pegue”. E sim, é folk (e com belíssimas pontas) até que entra aquela parte do riff de guitarra feito para cantar (‘pa ra ra ra ra ra-ra, pa ra ra ra ra ra-ra’) e a canção começa a crescer, a desintegrar-se por completo e a comer os seus próprios detritos. O povo delira e não é razão para menos. 20 anos?! ‘Instant Street’ vai enterrar-nos a todos.
Atingido o cume, a descida é lenta e prazenteira, de uma ‘Magdalena’ confessional à enviesada ‘Everybody’s Weird’, com um fim perfeitamente diabólico. Depois de ‘Let’s See Who Goes Down First’, o adeus ao álbum faz-se serenamente com ‘Dream Sequence #1’.
Numa comunicação que alterna o inglês com um português muito satisfatório e bem-humorado (virtudes das patuscadas de Sesimbra), Tom Barman despede-se com um ‘até já’ que antevê um encore extracurricular. A temperatura não arrefece, apesar de ‘Quatre Mains’ (de “Following Sea”, de 2012, ainda o mais recente disco dos dEUS) e ‘Constant Now (de “Keep You Close”, de 2011) não serem, muito provavelmente, as canções que os fãs mais desejam ouvir esta noite (na Bélgica, no passado fim de semana, houve ‘For the Roses’, ‘Morticiachair’, ‘Little Arithmetics’ ou ‘Suds & Soda), ‘desfeita’ compensada por uma excitante ‘Fell Off the Floor, Man’, soberbo desvario perpetrado naquele bar debaixo do mar. ‘The Architect’, de “Vantage Point” (2008), e a balada de fim de festa ‘Nothing Really Ends’, single de 2001, dão por encerrada a noite.
1999 foi.
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