





O futuro de Salvador Sobral começa agora. Uma conversa sobre libertação, canções de verdade e um pós-Eurovisão carimbado em “Paris, Lisboa”
30.03.2019 às 9h00
Numa entrevista desempoeirada, Salvador Sobral fala com a BLITZ sobre o facto de ter encarado a morte de frente, uma nova colaboração com a irmã, Luísa Sobral, as hipóteses de Conan Osiris na Eurovisão e música com fogo-de-artifício
Depois de dois anos repletos de emoções fortes, em que passou da vitória na Eurovisão ao transplante de coração, Salvador Sobral regressa à música com “Paris, Lisboa”, um álbum libertador. Em conversa com a BLITZ, o cantor começa por falar do início doloroso deste segundo álbum, com uma canção que o ajuda a arrumar o passado, mas também de um novo amanhecer “apadrinhado” por Fernando Pessoa. “Paris, Lisboa” é uma aventura “familiar”, no qual não só volta a trabalhar com Júlio Resende, seu parceiro habitual, e com a irmã, Luísa Sobral, no dueto ‘Prometo Não Prometer’, como canta com o amigo António Zambujo e interpreta uma canção escrita pela mulher, a atriz francesa Jenna Thiam.
Partindo do álbum, que ontem chegou às lojas e plataformas de streaming, a entrevista, direta e desempoeirada, passa ainda por temáticas como a mortalidade, que viu bem de perto, a experiência enriquecedora da Eurovisão (com a qual, garante, já não tem uma relação “ressabiada”), os concertos noutros países e aquilo que pensa sobre a vitória de Conan Osiris na edição deste ano do Festival da Canção e consequente participação na Eurovisão. “Penso que tenho tomado as decisões certas para fazer sempre aquilo de que gosto e essa vai ser sempre a minha missão, mas nunca se sabe... Se calhar amanhã quero ser uma estrela pop e vou fazer pachanga”.
Em que momento destes últimos, e bastante atribulados, dois anos sentiu que este novo álbum estava a nascer?
Deve ter sido um mês depois da cirurgia, quando ainda estava no hospital. Antes não estava nem aí para pensar nisso, até porque saiu um disco ao vivo, do outro disco, em novembro ou dezembro [de 2017]… A seguir à operação percebi “ah, afinal estou aqui, isto vai continuar, não é? Se tudo correr bem… Portanto, é melhor começar a pensar num disco”. Lembro-me de estar a escrever, no hospital, e estava a tomar tanta coisa e ainda tão frágil que tremia todo, mas queria fazer apontamentos sobre o disco. E comecei a enviar mensagens à malta que admirava e queria que compusesse também para o disco. Foi aí. Acho que foi um ano, na verdade, de fevereiro a fevereiro. Agora acabou. Portanto é isso: um ano de criação do álbum.
O disco começa de forma difícil e dolorosa, até para o ouvinte, com ‘180, 181 (catarse)’. Como se sente a cantar esse tema? Vai levá-lo ao palco?
Essa canção, à partida, será mais de disco do que de live… Com exceção dos Coliseus e de Faro, porque são os concertos principais de apresentação do álbum e acho que é importante. Tem uma carga muito forte e depois é uma canção do passado, portanto já não faz sentido, já não estou nesse espírito nem preciso de revisitar aquilo agora. Não me apetece. Queria criar esse efeito “o que é isto? este gajo ficou maluco? Vamos lá ouvir o resto”. Tenho imenso tempo entre a primeira e a segunda canção para deixar as pessoas assim e, depois, vem o ‘Presságio’ para aligeirar um bocado a coisa.
É uma forma, também, de arrumar o passado?
Exatamente. É uma forma de fechar esse capítulo… Catarse, não é? E agora já posso começar.
Ainda passou muito pouco tempo, mas de que forma é que ter encarado a sua mortalidade de frente o mudou como pessoa e como artista?
Esta experiência, como todas as experiências, influenciou a minha forma de ver a vida. Mas sempre tive essa coisa de viver as coisas muito intensamente, não foi a doença nem tudo isto que aconteceu que terá provocado alguma mudança. As mudanças foram puramente físicas, no sentido de estar apto para todo o tipo de exercícios e atividades… Mas na hora de cantar e tal, não sei. Se me sinto melhor, também posso cantar com mais liberdade, não é? As mudanças passam por aí.
Que tipo de sentimentos atravessam estas canções?
O que tento fazer sempre na música é expressar liberdade com os músicos. Liberdade, improvisação e, sobretudo, comunicação, porque o jazz é uma música da comunicação: tu dizes, eu reajo ou ouço e não reajo. Neste disco, tento emular ao máximo uma atuação ao vivo. Nunca vou conseguir, porque estou num estúdio, estamos todos entre quatro paredes, mas os discos, para mim, serão toda a vida uma tentativa de emular essa energia e comunicação que existe ao vivo. Acho que é isso, sentimentos de liberdade, comunicação, todo o tipo de emoções, também, que podem ser positivas ou negativas. Raiva, amor, medo, um bocadinho, nessa primeira canção de que falámos, energias sexuais, sei lá! Todas as sensações são legítimas.
Como nasceu o dueto ‘Prometo Não Prometer’? A Luísa já tinha escrito a canção a pensar em si ou foi uma encomenda?
Por acaso foi… O ‘Prometo Não Prometer’ foi já há muito tempo, logo depois do ‘Amar Pelos Dois’ e daquela loucura toda. Disse-lhe “escreve-me aí próximo à ‘Amar Pelos Dois’” e ela escreveu-me o ‘Prometo Não Prometer’. Já andava a cantá-la há imenso tempo, sozinho ao piano e agora decidimos gravar. O produtor, Joel Silva, decidiu pôr uma harpa, coisa que achei muito engraçado. A harpa tem um som muito bonito e faz-me lembrar o Stevie Wonder. Ele tem uma canção, ‘If It’s Magic’, com harpa e acho lindíssimo o som. Nunca ninguém usa. Aceitei a ideia e lá fomos nós. A letra é lindíssima. São duas canções muito parecidas, ‘Amar Pelos Dois’ e ‘Prometo Não Prometer’: pequeninas, mas com toda a informação lá. São dois bombonzinhos.
A parceria com Júlio Resende parece estar para durar. Em equipa vencedora não se mexe?
É muito raro encontrares alguém que te perceba e que tu percebes musicalmente e com tenhas uma conexão assim tão forte. Eu tive a sorte de encontrar o Júlio… Com que frequência encontras a tua alma gémea? O Júlio é um bocadinho a minha alma gémea musical, no sentido em que gostamos dos mesmos caminhos e tomamos, às vezes, as mesmas decisões musicais. É uma boa relação e ele tem talento para escolher as canções que acha que eu devia cantar. Neste disco é a ‘Mano a Mano’, a ‘Ela Disse-Me Assim’, o ‘Presságio’… Já conhece a minha voz e sabe “a tua voz ficaria bem no ‘Ela Disse-Me Assim’”. E tinha razão. Não sei se será uma coisa para a vida, não se sabe o dia de amanhã… Um gajo casa-se e amanhã separa-se… mas, por agora, está a correr muito bem e estou muito feliz com a parceria.
E há aqui um terceiro elemento de ligação também, o Fernando Pessoa…
Exatamente. Voltámos a pegar no Fernando Pessoa, mas em português. O Júlio tem uma pastinha de puras pérolas musicais. Letras do João Monge, da Maria do Rosário Pedreira, tinha esta do Fernando Pessoa.. É uma pastinha preciosa, vermelha, que tem lá em casa e eu, às vezes, ia lá ver o que andava ali a magicar. Quando vi o ‘Presságio’, disse-lhe logo “deixa lá meter isto no nosso repertório”, porque ele tinha a ideia de fazer um disco mais tarde com aquilo. O ‘Mano a Mano’ também estava nessa pasta sagrada. Agora, já estamos a tocar outra da pastinha ao vivo, que é bonita mas só estará num próximo álbum… Mas foi assim que surgiu, estava na pastinha essa canção.
Há pouco falou da ‘Amar Pelos Dois’: todas as formas diferentes como já cantou esse tema fazem com que não se canse dele ou pensa que vai chegar o dia em que se esgota e parará cantá-la?
Sinceramente, hoje tenho a sensação de que não me vou fartar. Mas será que é igual a quando te apaixonas, quando pensas, “epá, vou estar com esta pessoa para sempre”… Se calhar, daqui a um mês, farto-me da canção. No dia em que não acreditar mais naquilo e não me apetecer mais cantá-la não a vou cantar. Se calhar vou levar com tomates no palco. Mas, neste momento, adoro a canção e continuo a adorar cantá-la.
Tirando o facto de ter conhecido o Caetano Veloso e de lhe ter dado esta canção, o que de melhor retira do período do Festival da Canção/Eurovisão? O que aprendeu com toda essa experiência?
Acho que a maior aprendizagem é saber lidar com a fama. Tive um período negro, muito escuro, de não lidar bem com as coisas, porque só vivia a parte pior da fama. Quando estava no hospital, não vivia esta parte que vou viver de tocar em Macau, na Polónia e na Alemanha. Agora que, finalmente, estou a viver as coisas boas da Eurovisão, sinto-me muito agradecido. Já não tenho essa relação ressabiada. Estou bastante agradecido à Eurovisão e ao que ela me trouxe.
Quando venceu e fez aquele discurso do fogo-de-artifício, houve quem aplaudisse e quem não gostasse. Não se pode gostar de música com sentimento e também de música com fogo-de-artifício?
Quem sou eu para dizer o que é bom ou não é? O que se passou foi que estive ali uma semana inteira a levar com aquelas canções, aqueles gritos daquelas tipas e os fogos-de-artifício, então estava com aquilo até ao cabelo. Hoje em dia, não sou tão fundamentalista [ao ponto de dizer] “a música é uma porcaria” ou “eu é que sei o que é música boa”. Não tenho de ter essa autoridade. Acho que é legítimo ouvir-se tudo e todo o tipo de música é legítimo. Agora, eu é que não tenho de gostar. Estava a quente… Não há mais a quente do que aquele momento ali. Ainda por cima, não tive tempo para pensar no que diria porque não pensava que ia ganhar. Lembrei-me de falar disso nas escadas até [ao palco]. Foi ai que pensei “de que vou falar? O que há para falar? Ah, vou falar desta porcaria, porque estou aqui há imenso tempo a levar com isto”. E pronto, agora sei que fui demasiado sentencioso.
Acompanhou o Festival da Canção este ano?
Não, porque estava em Estocolmo. Não acompanhei. Estive o mês todo lá. Mas, obviamente, vi o Conan Osiris. Cheguei no domingo e toda a gente me pergunta o que eu acho. “Epá, tirei um doutoramento em Festival da Canção, portanto sou a voz da razão e vou falar sobre o Conan Osiris”… Acho que aquilo é muito impactante, chocante, não é? Muito diferente, portanto tem tudo para ganhar. Força aí. Agora, não é uma coisa que eu ouça, não me apetece, não é a minha música, mas acho que tem todas as hipóteses. Naquele concurso, ganha a diferença. A questão é só se há alguém mais diferente do que ele. É só isso. Eu era o mais diferente, também ganhei pela diferença só.
Neste disco, canta em quatro línguas diferentes… O Branko disse, em entrevista à BLITZ, que “ter quatro línguas misturadas num disco é reflexo da democratização da música e quase do fim do domínio anglo-saxónico”. Identifica-se com isto, de alguma forma?
Estou totalmente de acordo, sim. Também estou pelo fim da monopolização da América e da língua inglesa… Aliás, eu esforçava-me muito por falar inglês como um americano e um dia disse “porquê?”. Porque é que tenho de me esforçar para falar como um americano? Hoje faço de propósito para ter a pronúncia portuguesa a falar inglês. Acho que o mundo todo anda a sofrer desta americanofobia e também sou um bocadinho vítima disso. O que é uma estupidez, porque há pessoas bonitas em todo o lado. Ainda agora em Estocolmo conheci uns americanos e, logo à partida, não me apetecia porque acho que aquelas pessoas “coiso”, mas depois gostei imenso de conhecê-los. Acho que o mundo tem de passar por esta americanofobia para encontrar um equilíbrio.
E onde foi buscar estas canções noutras línguas?
Foi um processo natural… Para mim, o idioma é sempre a música, não a língua. A língua é só um veículo, como é cantar ou o piano, é mais um instrumento. É giro explorar fonemas diferentes. Aliás, agora adoraria cantar em sueco, para fazer aquele som que eles têm. É interessante cantar em diferentes idiomas por isso. A Sílvia Pérez Cruz também tem um disco para aí com cinco idiomas diferentes. Todas as línguas são legítimas… Até em lituano cantei no outro dia, lá na Lituânia.
Quando toca no estrangeiro, as pessoas vão ter consigo no final do concerto para falar?
Eu tenho um problema… No final dos concertos, adoro ficar com a banda a discutir o que fizemos e nunca vou dar autógrafos… Mas há uns resistentes, que ficam, ficam, ficam a seguir ao concerto e, quando estamos a sair, dou um autógrafo e tal e ainda falo um bocadinho com eles. Normalmente, não vou dar autógrafos logo a seguir, porque um tipo já está ali a tocar uma hora e meia e depois ainda tem de se ir sentar e… Nunca percebi isso, mas pronto.
E ainda o abordam muito na rua para falar sobre a Eurovisão?
Já aconteceu. Em Espanha acontece, aqui acontece, na Bélgica aconteceu uma vez… Mas lá fora não acontece muito. Eu também estou sempre a mudar. Não é de propósito, mas a minha cara está sempre a mudar. Na Eurovisão estava todo chupado e com o cabelo muito grande, portanto por aí não chegam lá. Na Suécia, as pessoas são completamente loucas pela Eurovisão e eu fiz lá um concerto num bar, sem as pessoas saberem quem eu era. Quando uns amigos meus portugueses que tinha lá disseram quem eu era eles não acreditaram. Começou-se a espalhar-se pelas pessoas do bar e ficaram malucas, não acreditavam que estava ali o vencedor da Eurovisão. Eles põem a Eurovisão e o Melodifestivalen, que é o Festival da Canção deles, no topo, então acharam estranhíssimo eu estar num bar de esquina, numa cave, a cantar jazz.
O que quer da música hoje?
A minha missão sempre foi ser o mais genuíno possível, verdadeiro comigo próprio e com os músicos… Quero tocar a verdade, aquilo de que gostamos e em que acreditamos mesmo. Tocar música que não seja, de todo, fabricada ou influenciada pela indústria. Penso que tenho tomado as decisões certas para fazer sempre aquilo de que gosto e essa vai ser sempre a minha missão, mas nunca se sabe... Se calhar amanhã quero ser uma estrela pop e vou fazer pachanga. Não sei… Mas, hoje, a minha missão é passar emoções às pessoas. Se fizermos música de verdade e sentirmos a música de verdade as pessoas, do outro lado, também vão senti-la de verdade. É isso. Adoro provocar todo o tipo de emoções às pessoas. Quando as pessoas ouvem a primeira canção do disco, ‘180, 181 (catarse)’, fico a olhar para elas e vejo-as incomodadas. Isso é ótimo. A arte é isso, também, é incomodar.
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