
Sudoeste 1998
Eu trambolho não me confesso
18.07.2019 às 16h13
Influenciar ou não influenciar, eis a questão
É a indignação do momento – espero apanhá-la a tempo, ops, já fugiu. Uma instagrammer/influencer parou para pensar e decretou que “há uns anos atrás nós parecíamos todas uns trambolhos” e, como se não tivesse sido suficientemente claro, “os festivais de verão eram frequentados por trambolhos”. Está a falar da forma como nos vestíamos e como não nos depilávamos (que pacóvios, mulheres com buço, cambada de friques) para ver concertos em descampados. Até eu, que tenho barba, ruborizei (e, aparentemente, não é nada comigo). Mas depois pensei: nada mais nobre do que alguém se dar a conhecer através da sua doutrina, do que quer para o mundo.
Pensar faz pensar faz pensar faz pensar. E neste devir orgástico cerebelo acima, cerebelo abaixo, ocorrem-me três coisas: primeiro, se não for para ver concertos, os festivais de música não servem para coisa alguma (serão como um restaurante com ‘gente bonita’ mas sem boa comida – mais cedo ou mais tarde ficarão vazios) e os instagrammers podem voltar para o bowl de granola; segundo, a forma como nos despimos ou vestimos diz tanto da força da nossa personalidade como das nossas inseguranças (mas, em última análise, ninguém tem nada a ver com isso; esse deveria ser o mandamento da geração Z); terceiro, a voz de um influencer (ou de qualquer outro emissor de tiradas que se tornam públicas) é aquilo que queremos que ela seja, tem a importância que queremos que ela tenha, ganha a relevância que queremos que ela ganhe. Sim, o mundo está uma confusão mas a maior parte das pessoas continua com a cabeça pregada ao tronco; não custa pensar um bocadinho.
No que sobra, continuo na minha: a indignação que se seguiu e que – apurei eu com faro nada científico – se refugia na superioridade ético-moral do seu tempo (que é a mãe da “música do meu tempo”) é a mesma que mais rapidamente resvalará para um apartheid festivaleiro – gente bonita e fútil para um lado, as peludas e fora de moda apaixonadas pela música para outro. Não só é um absurdo pensar assim como, dessa forma, mais dificilmente nos reproduziremos – precisamos de todos, dos zulus e dos aduladores de Schopenhauer, dos influencers e dos psicólogos, de más e de boas opiniões. E – porque não? – de formosos cisnes que se transformem em trambolhos. É verão, caraças, atinem.
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