Isto é Inglaterra
22.08.2018 às 16h47
O fervilhante subsolo da música elétrica britânica à beira dos anos 90. Um tratado sobre a estonteante beleza da efemeridade em 72 (!) canções
É um prazer voltar aqui. Em 2014, a editora Cherry Red — fiel cuidadora de alguns dos mais apetrechados arquivos da música feita nas ilhas britânicas — pegou no repertório da cassete “C86”, lançada pelo semanário “NME” em 1986, para acrescentar às 22 canções que então apresentaram o indie britânico pós-Smiths outras 50. “C86”, que ao longo de três décadas se tornaria mais um género do que um mero título de disco, ganhou lastro e — melhor ainda — transformou-se numa série, um desafio irrecusável a garimpeiros e outros geeks daquela música que outras músicas (mais populares, mais bombásticas, mais tudo) não deixaram ouvir bem. Depois de “C86” veio “C87” (2016), apresentando novos capítulos de bandas já firmadas (Wedding Present, Talulah Gosh), introduzindo em cena outros ‘atores’ (Inspiral Carpets, The Vaselines); depois de “C87” surgiu “C88” (2017), operando a mesmíssima rotina, deixando para trás quem ficou para trás (em grande parte dos casos, bandas que lograram fazer o single perfeito à primeira tentativa e se desmembraram pouco depois), abrindo portas a quem de fresco se mostrava (como os Stone Roses). É uma troca de cadeiras constante e uma recontextualização do passado faseada e criteriosa, criando-se ao longo do processo uma adorável confusão: serão estas canções de ontem, quando não reparámos nelas ou quando os seus protagonistas estavam longe do lugar mais visível que saberiam ocupar, ou de hoje, altura da improvável justiça ‘tardia’?

"C89", triplo CD editado pela Cherry Red
À semelhança dessa pérola da teledramaturgia britânica chamada “This Is England” (a história de um miúdo que cresce à força num bando de skinheads em 1983, que começou filme em 2006 e se desdobrou em três temporadas na televisão, estendendo a ação a 1986, 88 e 90), este esforço enciclopédico da Cherry Red é também um retrato da evolução dos tempos — neste caso, da magnífica efemeridade da pop na sua nação primordial. “C89”, o volume que agora nos chega, traz-nos a música do enclave: por um lado, proliferam os decalques de Morrissey e dos Housemartins (The Ogdens), da candura dos primeiros Primal Scream (Brighter, da Sarah Records, com a impossivelmente bela ‘Inside Out’), do bailado dos Orange Juice (Big Red Bus), do frenesim jangly dos Wedding Present (The Rainkings, Korova Milk Bar); por outro, há sintomas do que viria a ser a britpop via The La’s (eles, os de Lee Mavers, que em 1990 têm no seu único álbum um dos mais vitais documentos da pop britânica), um psicadelismo sónico herdado dos Pastels nos Family Cat (‘Tom Verlaine’, single da semana no “NME” em julho de 1989), um turbilhão noise (chamaram-lhe shoegaze) plasmado nos Telescopes (‘Nothing’ é Blur de “Leisure” quando os Blur ainda se chamavam Seymour), o espectro baggy dançável nos Snapdragons.
The Telescopes
E, claro, os Stone Roses (a grande banda britânica de 1989), com ‘Going Down’, o adorável lado B de ‘Made of Stone’, ainda mais para o lado do flower power do que da intoxicação rave. Uma nova década se aproximava e uma certa ideia de ‘independência do it yourself’ estava de partida, vitimada pela geração do eu (não é coisa de agora) e um hedonismo que haveria de permear a música britânica no arranque da década seguinte. De certo modo, 1989 representa também o fim do punk — no sorver destas 72 canções estará, porventura, a derradeira inocência.
Publicado originalmente na revista E, do Expresso, de 18 de agosto de 2018
Ouça uma playlist com algumas das músicas que integram "C89":
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