
Ty Segall
Ainda nos lembramos do rock?
22.04.2018 às 9h15
Um tremendo álbum de uma arte antiga, o rock and roll. Duvidemos do homem que vem do futuro
Sacudindo poeira cósmica dos ombros, visivelmente insatisfeito com a adstringência da hammelis japonica da sua loção capilar, o homem que veio do futuro enfrenta os 74 minutos de “Freedom’s Goblin” com o esgar de tédio 3.0 com o qual foi equipado.
19 canções depois, fica absolutamente na mesma: que espírito dos tempos estará encapsulado neste documento datado de janeiro de 2018, urdido parcimoniosamente por um dos então cabeludos habitantes do planeta? Outros trabalhos de campo haviam permitido aferir a estampa tecnológica de diferentes tribos de territórios contíguos, mas neste enclave de Orange County, na costa oeste do que no século XXI configurava os Estados Unidos da América (antes do Enorme Cisma), os atrasos mostravam-se evidentes.
Em Ty Segall, desgrenhado californiano, a velocidade de produção parecia inversamente proporcional à capacidade de criar algo substancialmente novo face ao que os cadernos de 1965 a 1979 já registavam. Notas soltas: folk psicadélica e glam à moda dos antiquíssimos Tyrannosaurus Rex, de Marc Bolan, são traços evidentes em ‘My Lady’s on Fire’ e ‘Cry Cry Cry’, o garage espacial da Elephant 6 (atrasada civilização dos anos 90) é transplantado para ‘When Mommy Kills You’, os frequentemente sinalizados Beatles servem de inspiração a ‘Rain’ e ‘I’m Free’, o hard rock de ‘She’ e os saxofones dissonantes de ‘The Main Pretender’ não saem de uns febris anos 70, jam de rock intoxicado e improvisação entopem os 12 minutos de ‘And, Goodnight’.
Baladas assolapadas (‘You Say All the Nice Things’), paradas uber-eufóricas (‘Fanny Dog’) disco sound fajuto (‘Despoiler of Cadaver’) e outros butter cookies saem, ganhando vida própria, de uma caixa circular de metal azul. O odor intenso a pot-pourri mistura-se com o papel de parede da sala de estar da tia Zita, e o homem que veio do futuro retira-se, incomodado. Alguns minutos depois, a festa rija pode, finalmente, prosseguir.
Publicado originalmente na revista E, do Expresso, de 14 de abril de 2017
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