
Jack White
Ó Jack White, o que foste tu fazer?
06.04.2018 às 10h45
Não há forma simpática de colocar a questão: Jack White, um dos maiores artesãos do rock do século XXI, tem em “Boarding House Reach” o seu pior disco
Cala-se o jazz de brandos costumes de ‘Humoresque’ (que título tragicamente apropriado) e a questão nada metafísica que nos assola não é outra que não esta: “ó Jack, caraças, o que foste tu fazer?”. 44 minutos decorridos sobre o início daquele que é o terceiro álbum em nome próprio deste buliçoso operário do rock, a sensação é a de termos perdido para o excesso gongórico um amigo de longa data, outrora rapaz de prazeres simples e linguagem inteligível. “Logo tu, Jack, que nos mostraste como o rock insuflado só serve para experimentar aparelhagens”. Logo ele.
Um dos principais problemas de “Boarding House Reach” é, por tudo isto, ético. Jack White foi sempre um depósito moral da nação rock and roll quando o fogo de artifício se sobrepôs à essência, e especialmente quando o ‘regresso às raízes’ foi a senha de entrada dos seus White Stripes, dos Strokes e, estendendo a malha, dos Black Rebel Motorcycle Club, numa década (a primeira do século XXI) subitamente sedenta de novos velhos prazeres elétricos. Se os últimos beijaram com hálito a tabaco o barulho bom dos Jesus and Mary Chain e o ‘gangue’ de Nova Iorque soube, empertigadamente, ‘roubar’ a coolness da new wave americana do final dos anos 70, White era uma figura deliciosamente anacrónica, uma parte garimpeiro, outra caixeiro viajante curandeiro. Com a sua big sister (na verdade ex-mulher, Meg White), resgatou aos blues o seu esqueleto e cunhou a sua própria tradição: a de esculpir rock enquanto fala diretamente com os ‘espíritos’.
Habituado, desde o ocaso dos White Stripes, a desvalorizar a função ‘cardíaca’ da banda que o trouxe à tona, Jack tornou-se, paulatinamente, um complexo ‘arranjador’ do cânone rock. Assistimos, com agrado, à imposição de um ‘super-herói’ que combinou em Raconteurs e Dead Weather as atualizações que já não podia incutir no duo, e que, ao primeiro álbum a solo (“Blunderbuss”, de 2012), voltou a colocar com engenho todos os seus apetites na centrifugadora. Ao terceiro, porém, e depois de um “Lazaretto” (2014) que já denunciava adiposidades, os danos resultantes da rédea solta – a bateria esquemática de Meg dava-lhe balizas, limitações que obrigavam White a subtrair gordura ao seu ímpeto – são visíveis.
“Boarding House Reach” é um disco que atira blues rock, jazz e hip-hop para a Bimby e nos deixa a pensar não no petisco, mas nas valências impressionantes da máquina que o fez. É um disco que se celebra a si próprio (White está em todo o lado, demasiadamente), que se esgota no percurso de experimentação que empreende, em que White parece procurar sempre a enfatização de um elemento desconfortável: seja este o rapping em solo jazzístico de ‘Ice Station Zebra’, o solo de guitarra processado de ‘Corporation’, a maionese estragada dos efeitos sonoros de ‘Hypermisophoniac’, o spoken word de pregador de ‘Everything You’ve Ever Learned’, os sintetizadores atmosféricos de ‘Get in the Mind Shaft’ (canção de funk digital que Prince faria em 45 segundos e apenas com os indicadores das duas mãos) ou a caixa de ritmos tosca na balada country ‘What’s Done Is Done’. Uma barafunda que só se tolera porque White é grande – e todos os grandes fazem uma destas uma vez na vida.
Publicado originalmente na revista E, do Expresso, de 31 de março de 2018
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