
Um belo álbum que 2017 esqueceu
03.01.2018 às 11h26
Obra e graça de um veterano sempre muito confiável mas eternamente negligenciado: Robyn Hitchcock
Robyn Hitchcock, 64 anos. Primeiro foram os Soft Boys, luminoso combo rock surgido em pleno fulgor pós-punk de final dos anos 70. Nada de pós, nada de punk, porém: “A Can of Bees” (1979) e, principalmente, o cintilante “Underwater Moonlight” (1980) operaram à beira dos ‘oitentas’ uma releitura do psicadelismo, dos Byrds psicotrópicos de meados dos anos 60 aos primeiros Pink Floyd (os do insano Syd Barrett). À distância de um Atlântico, uns jovens R.E.M. (Peter Buck, principalmente) tiravam notas. E a jangle pop dos anos 80, guitarras em trinados enxutos mas torneados, haveria de lhes fazer um simpático saque.
Antes de os XTC reconfigurarem a pop espetral em meados dos anos 80, Robyn Hitchcock já por lá tinha passado para uma chávena de chá. Não se deixou ficar. A solo, ao longo de uma vintena de discos, foi quase literal na apreciação dos baluartes Dylan, Lennon e Barrett, e não deixou que a criatividade evidente (para uma intensa minoria) destapasse o manto do devoto da obra alheia – Hitchcock foi sempre aquele artista à beira do grande feito a quem é reiteradamente vedado o elogio da originalidade. É sintomático, por isso, que o vigésimo primeiro álbum da lavra pessoal tenha o seu nome a fazer de título.
Nestas 10 canções estão encapsulados os melhores apetites de um letrista surrealista, madcap assumido, melodista vertiginoso, talhado para refrescar o que, noutras mãos, poderíamos descobrir gasto: um rock de couturier eivado pelo suave desvio do psicadelismo. Depois de um despojado “The Man Upstairs” (2014), fiel depositário de uma preciosa versão de ‘The Ghost in You’ dos Psychedelic Furs, o inglês ruma a Nashville para, com o produtor Brendan Benson, construir o seu disco mais assertivo, com os riffs de guitarra a resplandecerem em ‘Virginia Woolf’ (dos dias de sol), ‘Mad Shelley’s Letterbox’ (dos Soft Boys revividos), ‘Detective Mindhorn’ (da britishness charmosa), ‘1970 in Aspic’ (do country-rock aconchegante) ou ‘Autumn Glasses’ (da lenta combustão). É milagre.
Publicado originalmente na revista E, do Expresso, de 30 de dezembro de 2017
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